quarta-feira, 8 de junho de 2016

Ensaios sobre a Intolerância

por: David Vega

Confira a entrevista sobre o tema:





A meu ver, é somente através da experiência, e na repetição de eventos que empiricamente podemos, por meio do sensorial, raciocinar sobre algo (nos moldes humeanos). Se tivermos isso como um hábito, muitos pré-conceitos e verdades indubitáveis cairão por terra, dando voz à racionalidade e uma questão humana livre de superstições. O ceticismo (e quando digo isso, não me refiro a um materialismo ou a ausência de qualquer fé e religião, mas sim à conduta) não nos proporciona condições e descrições absolutas, sendo então a verdade relativa. Portanto, é através desse caminho que muito do aparato ideológico a priori da intolerância pode ser combatido, pois sempre, superstições e verdades enraizadas levaram a um absolutismo que não permite qualquer questionamento. Precisamos de investigações honestas constantes sobre os valores, a religião, a Constituição e a própria ciência que organiza nossa sociedade. Uma proteção das veleidades de uma suposta visão pré-determinada das coisas. Porém esse empirismo jamais poderá criar verdades universais, pois cada caso é um caso, e cada realidade, deve ser investigada por meio da experiência e subjetividade de cada olhar que a descreve. Não é possível ter um “modelo”, um “molde” que sirva para o mundo inteiro, e isso, as ideologias utópicas de destino manifesto, que sonham com um Estado único para o planeta, ou a remoção do mesmo, uma raça única ou a perfeição através de um igualitarismo pleno inexistente, precisam aprender, antes de proporcionar novos horrores e cenas terríveis que hoje assistimos impassíveis diante de um televisor.

A razão não influencia diretamente nossas ações, a moral e as paixões sim! Uma pessoa pode agir de uma forma racional, porém imoral. Como exemplo, a tragédia de Sófocles, em que Édipo desconhecia seu parentesco com Laio, nesse caso, é mais digno de pena do que o que ocorreu com o imperador Nero, que ordenou conscientemente a guarda pretoriana assassinar a própria mãe, Agrepina. A intolerância pode ser inconsciente, ou quando consciente e promovida, é ainda pior e não pode ser entendida livre de um crime.

Outro fator de relevância, é quando você não vê o seu adversário como um indivíduo ou um semelhante, tirando a condição humana até, por conta da vertente política que ele está inserido, sua condição corporal, orientação sexual, classe social, etnia etc. Seriam aquelas pessoas marginalizadas que tem uma “cidadania parcial”, vivemos em uma sociedade em que uns são mais cidadãos que outros (em termos de direitos e deveres), uns possuem mais acesso ao que compõe a gama de garantias individuais, que outros. No caso político, eu gostaria de chamar a atenção para a questão da “alienação”. Essa palavra deriva do termo “alien”, aquilo que vem de fora, ou seja, assim como estrangeiros ou seres extra-terrestres são vistos como algo distinto, muitas vezes não reconhecendo a humanidade nos mesmos, muitas correntes políticas pensam o mesmo, se o sujeito é apenas um ser social, ou pertence a ideologias distintas das que se consideram “não alienadas”.

Uma parcela de movimentos políticos radicais, parte do pressuposto que toda oposição é alienada, portanto já iniciam o debate no alto de um pedestal, é uma relação desigual, transcendental, pois supostamente “um lado é abençoado pela verdade” que o outro, ainda no “obscurantismo”, não é. Qualquer argumento do desfavorecido nessa ocasião jamais será suficiente, pois assim como não se aceita a condição humana do adversário em outros casos, não se reconhece a intelectualidade do mesmo, apenas por este não orbitar na corrente ideológica da situação ou legalista. O velho dilema dos radicais: “se eu não ganho para mim, todos então devem perder”. Tudo o que é político, ou que não é, é tomado politicamente como se fosse. O campo das ideias sempre foi movido pelas paixões, mas isso não quer dizer que não existem paixões altruístas, que facilitam elevar-nos ao bem público pela troca sensorial entre indivíduos, se aproximando ao verdadeiro “sentimento de humanidade”.

            Outro ponto que destaco, é algumas denominações que passam a ser usadas erroneamente, categorizando tudo aquilo que possivelmente pode se aproximar de um “ismo”. Os sociais democratas são tratados de “comunistas” pela extrema direita que considera qualquer política estatal socialista e o contrário, de “fascistas”, ambos termos que se tornaram pejorativos, são reproduzidos por muitos sem saberem o real significado.

O conservadorismo não é necessariamente “fascista”, muito menos o liberalismo. Esse regime de massas era ligado ao futurismo (vide Marinetti), o fascio (ou fasces), era um feixe de varas, existente desde o período etrusco, um conjunto de gravetos que junto formam algo muito mais forte que um só (coletivismo). Em nada tem a ver com o individualismo! Os lictores, encarregados da execução da justiça na Roma antiga, carregavam um feixe com um machado, e diz a lenda, que se a pena fosse branda ao condenado, ele apanhava com uma das varas, e se ela fosse a máxima, o sujeito tinha a cabeça cortada pelo machado, mas é apenas boato, certo é, que, cerimonialmente, precedia a passagem de figuras da suprema magistratura e era carregado abrindo caminho em meio ao povo. O símbolo do feixe e o machado até hoje está presente no brasão da República Francesa, de diversos poderes judiciários em vários países, no escudo do governo dos EUA... É anterior e não exclusivo dos camisas negras de Mussolini. Quando se banaliza um termo como xingamento, as pessoas que pronunciam sem pensar jamais se preocupam em entender essas questões históricas, ou alguns, de má fé, distorcem seu significado histórico para instâncias que embora apresentem uma ou duas semelhanças, em nada coabitam com a essência da terminologia original, ele passa a ser “tudo aquilo que você não concorda”.

Essa dificuldade em reconhecer o outro como semelhante, remonta a História do homem, não concordo com Rousseau em afirmar que nascemos bons e somos corrompidos pela civilização, o bom selvagem. Um dos filósofos precursores a estudar o tema da intolerância foi Voltaire, a propósito da morte de Jean Calas, escritos do século XVIII, sobre a condenação de um protestante acusado de matar o próprio filho, que segundo a versão dos condenadores, teria escolhido o catolicismo. Foi provado, tempos depois que seu filho havia se suicidado, a campanha de Voltaire, tomando o caso do acusado como injustiça, foi uma das campanhas de opinião pública mais bem sucedidas de todos os tempos, conseguindo a revisão do julgamento. O autor vai até o antigo testamento e traz muito dessa questão acerca da religião, quando um povo se achava no direito de subjugar e conquistar outros por ser o escolhido por Deus, como no caso dos hebreus e a noção de “bárbaros” que os romanos tinham, permitindo assim um messianismo em submeter os demais povos a uma conversão à civilidade, prática que os cristãos herdariam anos mais tarde.

Estas “milícias celestiais” se sustentavam no controle e vigilância, constante, uma manutenção do status quo através do culto ao sobrenatural eleito por determinada sociedade, durante o início do catolicismo apostólico romano, aqueles cristãos que se proclamavam arianos (um cristianismo com modelos pagãos) eram logo depostos. É a inquisição espanhola que visa limpar o germe mouro, semita e druída, o iluminismo em excesso que degolou milhares de cabeças na guilhotina, são os atentados ateus do século XIX ou o racionalismo dos materialistas históricos que incendiavam conventos e executavam sacerdotes nas revoluções proletárias. Tanto as religiões quanto a ausência destas, produziram a barbárie. Enfim, seja na via política ou religiosa, os intolerantes não aceitam a diversidade, nem mesmo alianças estratégicas com as linhas antagônicas que são vistas sempre como “ameaça” e precisam ser combatidas ou controladas. “Não é mais contrário à religião do que a coerção” – (dizia São Justino, o mártir). 
A ausência de pensamento, totalizante e sistêmico, produz o sectarismo e uma segregação sem precedentes. A tolerância e intolerância são termos antônimos. Assim, a fim de compreender o que significa intolerância, devemos olhar para um duplo significado, um é o político, e outro médico. No entanto, a raiz dos significados é a mesma. A tolerância não significa que você tem que seguir as crenças ou opiniões dos outros; mas significa que o outro tem direito de ter suas próprias opiniões ou crenças. Você não tem que concordar com eles, mas simplesmente aceitar que eles têm o direito de fazer o que querem, mesmo que seja diferente do que o que você quer. Eu sei que ela não é fácil, é um constante exercício, uma paciência concentrada.
Friedrich Hayek, seguido de Hanna Arendt, lançaram o termo “A Banalidade do Mal”, se referindo aos totalitarismos nazista e stalinista e sua insaciável sede de poder. A maldade se torna uma prática habitual, faz parte de nossa rotina e se naturaliza o horror. Era perfeitamente corriqueiro ofender um professor liberal ou monarquista, deportá-lo, expurga-lo no caso dos países ocupados pela URSS, bem como quebrar a vidraça de um comerciante judeu era uma prática assegurada por lei e compactuada pela sociedade. O Estado e as leis serviam à barbárie, e a Constituição, que deveria assegurar liberdades individuais, é substituída pelo movimento político. O partido se torna a maior instância da nação e o líder é personificado fundindo Estado e ditador em uma coisa só.
Durante o julgamento de Eichmann, após ser capturado na Argentina e levado para Jerusalém, o mundo se chocou com o fato do mesmo não ser uma pessoa que se enquadrava no rótulo de bárbaro, violento e intolerante. Era um burocrata pai de família, que assinava documentos de envios de judeus aos campos de concentração como um funcionário administrativo de uma empresa. A banalidade do mal naturaliza ações que ocupam todos os espaços da sociedade, tendo os brutamontes truculentos das tropas de assalto à frente, mas uma legião de pessoas comuns, que frequentam a missa no domingo e cuidam de jardins, por detrás, que suportam e apoiam as ações bárbaras sem um exame de consciência ou qualquer questionamento, aí a ausência de pensamento ocorre. “Eu apenas cumpria as leis e fiz o meu trabalho” – afirmou o nazista.

A Intolerância no meio Acadêmico:

O filósofo Mário Ferreira dos Santos, brasileiro criador da chamada “Filosofia Concreta”, ostracizado no meio acadêmico brasileiro, tendo sofrido uma espécie de boicote nas universidades brasileiras nas quais a vertente dominante era o materialismo dialético, aponta que no meio acadêmico decadente atual, há a incompreensão entre ética e moral, a separação entre Religião, Filosofia e Ciência, para que estas estejam sempre em conflito, o proletário e a exploração ideológica, a juventude transviada e o uso dela como massa de manobra para fins políticos supostamente revolucionários.
Toda instituição tem um discurso predominante, seja ela uma escola papal onde o catolicismo impera, ou um liceu de artes e de filosofia iluminista. Não há problema nisso, mas quero chamar a atenção para o fato de algumas, que levantam bandeiras da diversidade, “Escolas Livres”, que na prática não são, e impedem o debate plural. É como se democracia e o próprio humanismo fosse apenas uma condição totalizante de algumas vertentes apenas. Pense só em tentar defender ideais liberais em um curso de Ciências Humanas tomado pelo discurso socialista, ou fazer o exercício contrário em um curso de Direito composto por uma maioria de direita. Sim! Ainda temos que avançar muito no debate e não estamos preparados para a democracia, o exercício da alteridade e a empatia. Digo isso por experiência própria. O constante exercício de relações binomiais (ou de mais vertentes), antagônicas, enriquece o debate e proporciona argumentos críticos tanto para um lado quanto o outro, mas parece que ainda estamos distantes de compreender isso. Os corpos docentes de muitas instituições priorizam as militâncias partidárias, pisoteando aqueles que querem fazer Ciência ou ousam questionar o discurso imperante, faz tempo que não temos imparcialidade (se é que tivemos um dia). Se no passado o militarismo tinha um discurso intolerante, hoje, muitos daqueles que foram perseguidos, agem da mesma forma (o que me faz questionar se as guerrilhas realmente lutavam por democracia, e não pela substituição de uma ditadura por outra).
A relação entre a dominação e o saber, entre o intelectual e a universidade, como Maurício Tragtenberg sabiamente notou, ainda nos anos 1970, traz o meio acadêmico para o centro de uma máquina de reprodução das elites dominantes, não apenas econômicas, mas detentoras da ideologia que conduz a sociedade. Quando não se aceita o saber vindo da vivência e apenas se legitima aqueles que possuem diplomas, a universidade está em decadência, e a erudição, o saber, foi institucionalizado e verticalizado.
Faz tempo que se perdeu a pluralidade de perspectivas, a diversidade de óticas ou vertentes. As “paixões sociais” (nos moldes humeanos) decorrem da relação de um sujeito com o outro; a exemplo do orgulho, da ambição, humildade, generosidade ou malevolência, é justamente do conjunto destas que surge a intolerância ou a tolerância. O meio acadêmico como muitos outros, reflete uma sociedade polarizada em que em ambos grupos se preza por partidos únicos ou coligações que não respeitam a oposição. A Democracia é um regime de pesos e contra-pesos! Lembro da frase de José Mariano Beltrame, secretário de segurança do Rio de Janeiro, do Partido dos Trabalhadores, reconhecendo o radicalismo dos filiados e camaradas de seu partido, bem como essa carapuça serve para o radicalismo da oposição também, que dizia: “Há dois anos que não se governa neste país. Só se ofende e se defende”.
Penso, que quando vestimos uma camisa, por obrigação já estamos indo contra a camisa do outro, porém existe a possibilidade de gostar do “amarelo” e compreender o “vermelho”, sem precisar ceifar ou aniquilar tudo aquilo que compõe sua essência, e que os extremos, na prática, são todos iguais. Bem aventurados são aqueles que se imaginam no lugar do próximo, os que exercitam a prudência e a virtú, espécimes cada vez mais raros.
 



Um comentário:

  1. Olá!

    A angustia causada por esta eleição, me fez pensar em você e me trouxe até aqui.

    Só queria registrar meus parabéns e dizer que sinto orgulho de saber onde está.

    Agradeço pelo texto.

    Ass: alguém aí.

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