por: David Vega.
Muito se fala da obra
mundialmente conhecida “Robson Crusoé”, de Daniel Defoe, referência na temática
sobre naufrágios, ou sobre a vida do homem em seu estado de natureza. Mas
poucos sabem de outro relato, este, verídico, ao contrário do livro de Defoe que
é uma ficção, as memórias do aventureiro alemão Hans Staden no Brasil
podem dar-nos uma ideia de um país inexplorado, com pequenos povoamentos
na costa e a descrição que faz dos nativos e suas práticas.
Quando Américo
Vespúcio lança seu famoso “O Novo Mundo”, batizando o recém descoberto
(revelado) continente ao velho mundo com seu nome, as histórias de viajantes
que aqui estiveram passaram a alimentar a imaginação e o interesse da jovem
imprensa, na época da revolução da prensa de Gutemberg, propiciando a
publicação de grandes tiragens de livros que logo se espalhavam pela Europa.
Porém, muitas destas histórias eram aumentadas, ou até inventadas, por muitos
que queriam fazer seu nome e se tornarem famosos a qualquer custo. Logo as
lendas de fontes da juventude, de rios de ouro e fórmulas mágicas de
feiticeiros que davam virilidade potencializada tornaram-se populares (até os
dias de hoje). O que faz a obra de Hans Staden única, é que ele a relatou para
um ghostwriter que foi fiel à sua descrição e depois confirmou com outros que
aqui estiveram e o conheceram que aquilo tudo procedia, ele jamais mentiu!
Depois da carta de Pero Vaz de Caminha, podemos considerar este documento como
aquele de maior importância sobre os anos iniciais de nosso país.
Dentre os muitos
títulos que o livro já teve, uma edição da L&PM POCKET de 2019, com
prefácio de Eduardo Bueno, leva: “Hans Staden – Duas Viagens ao Brasil”. A
primeira em 1548 junto da esquadra portuguesa que aportou em Pernambuco,
relatando uma batalha contra os índios Caetés na região de Olinda. Aprendeu o
ofício de artilheiro e prometeram-lhe honrarias quando retornasse à Europa.
Na segunda viagem,
em 1549, uma vez partindo da cidade de Sevilha, junta-se aos espanhóis e tem
como destino a ilha de Santa Catarina, consegue atracar no povoado ali, do qual
alguns colonos vinham da região do Rio da Prata, mas sobem a costa, chegando em
São Vicente, o que seria o atual litoral sul de São Paulo, cuja capitania
levava o mesmo nome. Ali presencia a realidade do conflito entre os nativos, os
Tupinambás, pertencentes à confederação dos Tamoios, aliados dos invasores
franceses, são inimigos dos Tupiniquins, aliados dos portugueses. É construído
um forte em Bertioga, e ele vivencia um ataque da tribo rival pelo mar, que
ataca com flechas incendiárias. A batalha lendária entre Tupinambás e
Tupiniquins foi registrada pelo viés de um trabalho sociológico pelo Florestan
Fernandes, em seu célebre “A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”
(1952).
Partindo com o
restante dos portugueses, uma vez recrutado por eles novamente, ele passa por
Itanhaém, e naufraga na costa, próximo a Bertioga, é capturado pelos Tupinambás
que o tomam como português, ou seja, seu inimigo. Staden falava a língua tupi e
conseguia se comunicar com eles, tentou por diversas vezes convencê-los de que
não era português, vinha de uma terra chamada Alemanha, e era amigo dos
franceses, seus aliados. Mas desconfiados, os tupinambás não acreditam em suas
palavras, embora em uma passagem dizem que ele tem barba ruiva igual a dos
franceses, e os portugueses tinham barba negra. A prática da antropofagia
(canibalismo) era comum entre eles, e desde o seu cativo, eles avisam que mais
cedo ou mais tarde irão abatê-lo e comê-lo.
Extremamente
religioso, em várias partes do livro, ele reza e mostra a sua devoção ao Deus
cristão, chamando seus aprisionadores de selvagens, desdenhando os seus
costumes, o que ele chama de blasfêmia, a prática de comerem o inimigo, seja
ele português ou tupiniquim da tribo rival. O livro tem uma importância
histórica porque ele relata com detalhes a prática da antropofagia, na região
de Ubatuba - que se perdeu com o tempo, como um espectador. Em certa ocasião,
amarrado, veio pulando pela aldeia, pois seus pés estavam atados, e todos os
índios dali riram dele falando “aí vem a nossa comida pulando!”. Ao todo ficou
mais de oito meses cativo, e nas várias vezes em que foi ameaçado chegando
perto de ser esquartejado e levado à fogueira, teve a sorte de usar de sua
perspicácia em convencê-los que o seu Deus cristão iria puni-los. Então, quando
adoeciam os homens da aldeia, pediam para ele rezar para seu Deus, e com a
melhora dos enfermos, começam a acreditar que ele realmente tem o poder de se
comunicar com seu criador e através dele, pedem para “abençoá-los” na guerra,
para que venha a chuva etc. Isso impediu que fosse devorado pelos selvagens.
O livro traz o
registro da cultura dos Tupinambás, por exemplo a prática de se fazer o Cauim,
a bebida alcóolica de milho (chamado de Abati pelos índios) fermentado, o
ritual das festividades, dos enfeites; os tupinambás eram extremamente
vaidosos, adornavam-se com penas e pintavam um braço de preto e outro de
vermelho, bem como as pernas, o antropólogo Darcy Ribeiro fala no livro “O Povo
Brasileiro” que aquilo era “uma vontade de beleza”, e menciona inclusive a obra
de Staden. Isso explica a extrema vaidade da mulher brasileira até hoje, e um
sensualismo que nos descreve. Também aponta o ritual antropofágico: Na noite
anterior ao abate é dado ao prisioneiro uma mulher para alimentá-lo e servi-lo
sexualmente. No dia seguinte, primeiro as mulheres da aldeia dançam em torno da
vítima, amarram-no os pés com uma corda, e com um tacape golpeiam-lhe a cabeça,
que é separada do corpo. As vísceras são misturadas e dadas às crianças em uma
cuia, um prato chamado Mingau (que chamamos até hoje, sem ser de humanos, é
claro!), as pernas e os braços são assados e consumidos temperados com pimentas
verdes. Ele explica que aquilo não é feito apenas pela necessidade de se
alimentar, mas é devido a um ódio à vitima do grupo rival, esta que antes de
morrer diz: “eu tenho muitos amigos e eles virão para me vingar!”. Há a versão
popular de que os tupinambás, ao comerem os inimigos, pensavam adquirir a
coragem deles e como Staden parecia ter tanto medo, eles não quiseram comê-lo.
No livro ele tenta persuadir os índios, que com o tempo passam a tê-lo como
místico. Mas tem uma passagem em que dois mamelucos cristãos são capturados e
choram de medo, e mesmo assim são comidos. Em outro trecho também é levado
a um francês comerciante de pimentas, e os tupinambás mandam eles conversarem
para saberem se realmente ele não era um “pero” (nome dado aos portugueses,
talvez por conta de Pedro Álvares Cabral). Como era alemão, não entendia o que
ele falava, e o francês diz “Este é um autêntico português, podem comê-lo”.
Staden então lembra da famosa citação bíblica “Maldito é o homem que
confia em outro homem”. Na edição que li tem as ilustrações clássicas que dizem
ter sido feitas pelo próprio punho de Hans. Não darei detalhes de como
Staden conseguiu escapar, vale a pena ler o livro.
Após publicado foi
um sucesso na Europa, sendo traduzido para o holandês, inglês e latim.
Vergonhosamente apenas veio ao Brasil em 1892, as melhores tiragens foram as
edições comentadas pelo grande historiador negro Theodoro Sampaio.
Popularizou-se pelo Monteiro Lobato que escreveu uma versão contando as
aventuras de Hans Staden através de sua personagem Dona Benta do Sítio do Pica
Pau Amarelo, e também influenciou Paulo Prado, quem financiou a Semana de Arte
Moderna de 1922; pessoas como Tarsila do Amaral, que pintou o famoso quadro
“Abaporu” (que significa “Comedor de Gente”) e o próprio Oswald de Andrade, no
movimento Pau Brasil, com o manifesto modernista antropofágico que visava
desconstruir a visão romântica da literatura brasileira, como a de José de
Alencar, pela literatura marginal, trazendo metaforicamente a antropofagia e o
fato famoso do bispo Sardinha, que naufragou na costa brasileira e foi comido
pelos índios.
Em 1999 o livro
teve a sua versão cinematográfica mais recente, bem fiel à obra. Além de ser
importante para conhecermos um mundo que não existe mais, com práticas exóticas
e assustadoras de canibalismo, é de extrema importância por exemplo, para
muitos dos paulistanos que descem para o litoral no feriadão ou nas férias,
para as cidades de Bertioga e Ubatuba, e ali, repousando com um guarda-sol, nem
imaginam que guerreiros tupinambás comiam gente, e que as areias quentes
debaixo do sol escaldante faz-nos transportar a um mundo impossível de
vivenciar. Um povo que não conhece a sua História não sabe para onde vai.
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